.Na verdade, esse era um fato real que quase se tornou ficção. Uma colega de turma dizia que sua avó não gostava de preto e nem de pobre e a havia proibido de aproximar-se dos bolsistas da PUC. Não obstante aos conselhos da avó, ela sempre me tratou com gentileza. Mantínhamos uma distância polida. Ela sempre comentava (quando o assunto era sobre cotas ou coisa parecida) que sua avó achava inadmissível que um pobre estivesse estudando na mesma universidade que sua neta.
.
Sinceramente, nunca me senti ofendida com as palavras dela, apesar de serem bem desagradáveis. Ela fazia o tipo desagradável — e isso não era uma opinião só minha —, mas não sei por que, não sentia que ela falava aquilo por mal, para ferir a mim ou a quem quer que fosse. Ela, simplesmente, falava, e pronto... Embora com ar indiferente e displicente, estava transmitindo a opinião de sua avó.
.
Eis que um dia, era fim de novembro, eu estava no ponto do Pirata, voltando para casa, quando uma das domésticas, que trabalhava na Gávea, aproximou-se de mim:
.
— Oi, boa tarde.
.
— Boa tarde. Tudo bem?
.
— Tudo...E aí ? Vai trabalhar no Natal?
.
— Não.
.
— Não! Por quê? Tá sem casa?
.
Sem esperar a minha resposta ela perguntou:
.
— Tá a fim de fazer um bico? É aqui pertinho do seu serviço ( essa era uma das que pensavam que eu era doméstica). Mas tem que ser no Natal e no ano novo 25 e 31 . Topa?
.
Fiquei pensando na minha situação financeira que estava muito ruim naquele primeiro ano na PUC.
.
— Qual é o bico? Perguntei.
.
— Você vai ser minha ajudante. Te pago 150 reais. Você vai lavar toda a louça, arrumar a cozinha, descascar os legumes, arrumar e servir a mesa e, de vez em quando, levar uns petiscos na piscina para os patrões e seus convidados. E aí ? Topa?
.
— Tudo bem. Vou pensar...
.
— Pensa, pensa, porque a parada é boa. Olha só, todo ano eu trabalho no Natal e no ano novo. É com esse dinheiro que eu compro os presentes pros meus filhos, meus netos, meus afilhados, entendeu? Se não for assim, não compro. O dinheiro do pagamento é só pra pagar contas... O triste é que a gente fica longe da família, né? Mas fazer o quê? A gente não pode ter tudo. Depois que passa as festas, eu saio distribuindo os presentes (porque ela só paga no final). Mas quando eu chego, é aquela festa. Meus filhos já até se acostumaram longe da mãe no Natal. Cresceram assim, coitados!
.
— Tudo bem . Vou pensar e amanhã te dou a resposta.
.
— Valeu... Olha o nosso Pirata ali. Vamos correr pra pegar lugar sentadas.
.
Fui para casa pensando na proposta. Cento e cinqüenta reais! Era tudo o que eu precisava para fazer a minha ceia. Mas o preço seria alto demais. Pela primeira vez na minha vida passaria o Natal longe da minha família. As últimas palavras daquela mulher ainda faziam um eco na minha cabeça: meus filhos já até se acostumaram longe da mãe no Natal. Cresceram assim. Coitados!...
.
Em casa, comentei com a família. Assim como eu, meus filhos ficaram indecisos. Ganharíamos um dinheiro,mas eu não cearia com eles. Meu marido até que não achou a idéia ruim,pois disse que seriam só dois dias. Mas o Natal, para mim, tem um significado todo especial. A família reunida sempre foi muito mais importante do que a mesa cheia de guloseimas. O Natal me recorda a minha infância. O cheiro de tinta fresca, de tecido novo, de rabanada fritando (que nós comíamos ainda quente). A árvore de Natal era um galho seco, preso a uma lata de leite em pó, que nossa mãe cobria com algodão e enfeitava com caixas de fósforos embrulhadas em papéis coloridos. Não tinha pisca — pisca, tampouco presentes ao redor. Se bem que sempre colocávamos os sapatos na janela, que dormiam e acordavam vazios, pois Papai Noel nunca encontrava o nosso endereço.
.
Meu pai era bombeiro hidráulico. Quando desempregado, quase sempre vivia de bicos e trazia o pagamento já no fim da tarde. Trazia tinta (ou melhor, cal e corante — geralmente, verde) para pintar as paredes da nossa casa. Quando caía a noite, ele ainda estava dando os acabamentos externos. Minha mãe corria às lojas e comprava tecidos para fazer nossas roupas. À noite, estávamos todos de roupas novas e tomando bronca de meu pai, pois, não raro estávamos com as roupas e os braços manchados de tinta fresca e a parede marcada por um vazio de tinta, que vinha agarrado a um braço, uma perna, um cabelo, um vestido.
.
Já era bem tarde quando minha mãe saía da máquina de costura direto para o fogão para preparar a ceia. Por isso, comíamos as rabanadas ainda quentes. Uma das maiores diversões era ver os distraídos, com os braços e as roupas manchadas de verde fugindo da cara feia do meu pai na hora da ceia.
.
Os filhos dos vizinhos ganhavam presentes lindos e eu não conseguia entender por que o “bom velhinho” nunca deixava nada pra nós. Aos pouquinhos fomos entendendo a dinâmica da coisa. Os mais velhos já não colocavam mais o sapato na janela e, à medida que os menores iam crescendo e entendendo, faziam a mesma coisa. Creio que não crescemos magoados pela falta dos presentes, porque tínhamos uns aos outros. Tudo era motivo de risos, piadas e brincadeiras, inclusive a nossa dureza. Não tínhamos dinheiro, mas sempre passávamos os Natais juntos.
.
Todas essas memórias pesaram na minha decisão. Se aceitasse o bico oferecido pela colega, teria que deixar a nossa mesa posta antes de ir trabalhar. Como se eu fosse empregada nas duas casas. Na minha e na casa da patroa da colega de ônibus. A diferença é que na casa da patroa eu ganharia para fazer a ceia e na minha eu a faria de graça. Mas, e a graça maior? A de estar com a família? Como recuperar?
.
Fui cheia de dúvidas para o ponto de ônibus, mas a moça não estava lá. Não a vi mais nos próximos dias que antecederam o Natal. Deve ter perdido o meu telefone e o meu endereço. Pensei. Paciência, não tinha que ser. Chegou o Natal! Achei tudo tão maravilhoso. A ceia estava tão simples, mas passei com a família. Senti uma alegria diferente da dos outros anos, uma espécie de alívio, como se eu tivesse recuperado algo antes de perder, não sei explicar. Só sei que foi muito bom...
.
Volto das férias. Estou na Rua Padre Leonel Franca, como de costume, esperando o ônibus pirata.
.
— Oi colega, lembra de mim?
.
— Oi. Tudo bem? Claro que lembro. Você ficou de me arrumar um bico no Natal, não é mesmo? Fiquei esperando...
.
— Pois é... me desculpa... Fui à sua casa, mas no pé do morro, encontrei uma vizinha sua e perguntei onde você morava. Ela perguntou o que eu queria contigo. Falei sobre o bico e ela perguntou:
.
— Quanto é?
.
Falei:
.
— 150 reais.
.
E ela respondeu:
.
— Hi , essa vizinha não vai querer isso, não. Ela não precisa. Dá pra mim aí, pô. Eu preciso mais do que ela.
.
— Então fiquei sem graça e levei ela no seu lugar. Até que ela trabalhou direitinho... Da próxima vez eu te levo, falou?
.
— Falou. Tá tudo bem. Só gostaria de saber como se chamava essa vizinha?
.
— Peraí, deixa eu ver... Ah nem lembro mais... Foi em dezembro, já estamos em março... Hi, olha ali quem vai passando do outro lado da rua! É a neta da minha patroa... Ela estuda naquela Faculdade ali na frente — disse a mulher apontando para a PUC.
.
— Na PUC?
.
— É. Você não trabalha ali por perto? Balancei a cabeça, concordando. Olhei na direção em que ela apontou e deparei-me com a colega, cuja avó não gosta de pobres, pretos e bolsista. Superada a surpresa inicial, vendo a menina afastar-se sem nos ver, dei asas à minha imaginação. Então pensei:
.
Se a minha vizinha indiscreta não tivesse ficado com a minha vaga (meu bico), talvez eu tivesse ido à casa da colega de turma como ajudante de cozinha. E, talvez fosse servir petiscos à beira da piscina para ela, sua família e convidados. Talvez, distraída, eu lhe dissesse, na minha displicência:
.
— Olá Bia! Feliz Natal. Está curtindo as férias? — Desconcertada e muda ele enfiaria o rosto em uma revista, fingindo ignorar a minha presença e muito menos a minha pergunta. A avó, que não gosta de pobres, de pretos e de bolsistas, nos observaria com olhar atento e reprovador. e perguntaria:
.
— De onde você conhece essa serviçal, Bia?
.
Bia ficaria muda, sem saber o que responder à avó conservadora... E eu lhe responderia, já me afastando com a bandeja:
.
— Nós nos conhecemos da faculdade. Estudamos juntas na PUC...
.