(por Luciano Lanzillotti)
.A primeira vez em que encontrei a poesia de Ruy Espinheira Filho foi na feira de livros realizada no Rio de Janeiro, Poesia Reunida e Inéditos. Lá se vão quase dez anos daquele primeiro contato. O mais surpreendente dessa história é que fui conhecê-lo pessoalmente alguns anos depois, na mesma feira itinerante de livros, no dia em que o poeta receberia o prêmio na ABL, pelo primoroso Elegia de agosto e outros poemas (2005). Naquele dia passamos a manhã conversando sobre livros e a vida; mas, na verdade, a conversa já se iniciara bem antes e continua até hoje. Durante este tempo tenho tido a felicidade de compartilhar da amizade de um poeta simples e humano, sempre disposto a um diálogo igualitário, sem o distanciamento muitas vezes estabelecido entre escritores e leitores.
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Impossível ler seus poemas e não se sensibilizar diante dos questionamentos, pois são nossos também — compartilhamos das mesmas felicidades e agruras ao longo da vida. Assim, nada mais natural que ele fale de sentimentos humanos em linguagem humana, tal qual o fez Manuel Bandeira.
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Nesta conversa o poeta nos esclarece seus principais campos temáticos e nos convida a visitar sua fabulista memória.
LANZILLOTTI: Heléboro — seu primeiro livro, publicado em 1974 — já traz várias tendências de sua poesia, sobretudo a contenção expressiva e o lirismo elegíaco. A divisão do livro nas seções “Longe de Sirius” e “Música pretérita” revela o mal-estar existente em relação ao que é inatingível como experiência tátil, mas que se busca pela junção entre memória e recriação. O passado acaba tendo, dessa forma, um lugar privilegiado. Qual a relação entre sua poesia e a passagem do tempo?
ESPINHEIRA: Jorge Luis Borges dizia que todos os animais são eternos, menos o homem, porque este possui o conceito de tempo sucessivo — ou seja, tem consciência da passagem do tempo, com o qual leva a vida. A vida, sim; não apenas as coisas — como escreveu Ovídio. Em outras palavras: nos leva à morte. E esta é nossa angústia maior: a consciência da morte. Assim, como todo o mundo, desde cedo me senti participante desse drama. E, como escrevo com a vida, é claro que a consciência do tempo teria de estar presente. Quanto ao passado, é a única coisa que realmente possuímos — e que a fabulista memória vai tornando mais preciosa. Enfim, escrevo com o que há de mais forte em mim: o sentimento do efêmero e a memória. Que é o que somos todos nós: nossa memória; nosso passado. Encerrei o poema “As meninas”, de Julgado do vento, com este verso: “O passado não passa”.
LANZILLOTTI: O senhor lançou livros de crítica sobre Jorge de Lima, Mário de Andrade e Manuel Bandeira. Qual a influência da leitura desses e de outros poetas em sua poesia?
ESPINHEIRA: Influenciaram-me muito os três, pois eram mestres de poesia. No caso do Mário, sua influência foi mais crítica, ensinando-me, por exemplo, que a originalidade está em nós mesmos. Jorge de Lima e Bandeira foram mais mestres de poesia propriamente dita. Mas recebi e recebo a influência de muitos outros autores — como Camões, Drummond, Vinícius, Cecília, Sosígenes Costa, Carlos Pena filho e até Olavo Bilac, para só ficarmos nos escritores de Língua Portuguesa.
LANZILLOTTI: Ainda no que se refere à relação entre memória e passagem do tempo, o senhor, em “Insônia”, escreve “que lembrar é a minha natureza e às vezes/ um desespero”; já em outro poema, afirma que “mais pleno é o perdido, pois o resto/ ainda não se cumpriu”. A recordação de tudo que fora perdido é concomitantemente agonia e bálsamo?
ESPINHEIRA: Lembrar pode ser, mesmo, um desespero — sobretudo por não podermos assumir de forma total esse tempo contemplado, evocado, ou não suportar, como dizia Camões, a grande dor das coisas que passaram. E que, como já foi dito, porque passaram não passam nunca... Sim: a recordação é às vezes bálsamo, às vezes agonia. O outro verso que você citou ilustra o que falei há pouco sobre a memória e o passado: é claro que o que se foi é mais pleno, pois já está inteiramente realizado, cumprido; enquanto o presente e o que podemos chamar de futuro não chegaram a tal realização — ainda se encontram em processo ou apenas em estado de expectativa, anseio, sonho.
LANZILLOTTI: O poema “Elegia de agosto” fala da dor de Drummond diante da perda da filha. Manuel Bandeira publicou um poema homônimo. Coincidência ou não, sua obra poética, em alguns aspectos, evoca temas bandeirianos, partilhados também por outros poetas — quiçá, de toda a poesia. Até aí nada de novo... Enquanto Bandeira fala da vida que poderia ter sido, em sua obra perpassa, ao contrário, uma vida que foi e só volta a partir da recordação — seja esta real, seja fictícia. Qual o papel da recordação em sua poesia? Somente o que fora perdido é realmente nosso para sempre?
ESPINHEIRA: Esta é uma pergunta cheia de perguntas. Drummond viver mais alguns dias só para sofrer com a morte da filha única foi uma tragédia que me comoveu muito, daí o poema. Como o fato se deu em agosto, a elegia só poderia ser de agosto. O poema de Bandeira com título idêntico fala de coisa totalmente diversa e, a meu ver, sem valor poético: sua decepção diante da renúncia de Jânio Quadros. Creio que a segunda pergunta já está parcialmente respondida acima. Quanto a viver (ou reviver) pela recordação, direi que se trata de algo que acontece a todos os humanos. “Recordar é viver”, dizia o velho samba, repetindo um velhíssimo dito popular. Na verdade, todos os escritores, não apenas os poetas, escrevem muito mais com a memória do que com qualquer outro, digamos, encantamento.
LANZILLOTTI: A recordação da mulher amada, em alguns de seus poemas, trata ora de relações envoltas em dor, ora de perfis femininos que lembram semideusas. Outra vertente de sua poesia amorosa, entretanto, fala-nos de certa mulher tangível, humana, e vê o amor como o encontro entre os corpos. Essas duas vertentes caminham juntas no tema amoroso de sua poesia ou a tendência é uma suplantar a outra? É possível as almas se entenderem tão bem quanto os corpos?
ESPINHEIRA: Não me acho diferente dos outros no caso da poesia amorosa. O que acontece é que as mulheres são bruxas — como dizia Nikolai Gogol —, as quais tanto podem ser deusas, semideusas, quanto carne terrestre vibrante de sensualidade. Para mim, as mulheres são capazes de tudo, podem ser tudo, inclusive num só tempo. Sou grato a elas até pelos momentos de angústia, porque esses transes cruciantes também me enriqueceram. Quanto ao entendimento das almas, Manuel Bandeira achava que não era possível — e quem sou eu para discordar do mestre?
LANZILLOTTI: A infância em Jequié e Poções nos é passada como cercada de magia: lugar mítico onde a felicidade fora completa, sobretudo pela presença dos que hoje se encontram ausentes e pela liberdade das brincadeiras ao ar livre. Sobressai, entretanto, a impossibilidade de reviver aqueles momentos, instaurando-se, assim, a tristeza. A infância nessas cidades foi algo fundamental em sua vida, sobretudo como poeta? Qual sua relação com esse período da vida? O menino ainda existe no homem?
ESPINHEIRA: A infância foi em Poções; a adolescência, em Jequié. Houve magia, sim; e muita, nesses meus dois períodos de vida. Na verdade, houve magia em minha vida toda — e ainda há. Às vezes é uma magia cruel, mas magia; pois a vida não tem sentido, não tem lógica. Só a magia pode dar-lhe sentido — o sentido da magia. Nunca aceitei bem a separação que se faz entre sonho e realidade; sinto-me cada vez mais inclinado a concordar com Calderón de la Barca: “La vida es sueño”. Quem me prova que não é?
LANZILLOTTI: Alguns aspectos do pós-moderno estão incluídos em sua obra. Concorda com isso?
ESPINHEIRA: O que é mesmo o pós-moderno? Parece-me, mais do que qualquer coisa, uma dessas modas que de vez em quando assolam o mundo, especialmente as universidades. Moderno sempre foi, por definição, o que é atual, contemporâneo. Assim, se fôssemos pós-modernos, estaríamos vivendo depois da atualidade, adiante do nosso tempo. Fica fácil criar essas modas; é só mexer nas definições, nos conceitos, e inventar à vontade — como já inventaram até o fim da história... Se, como você diz, há aspectos pós-modernos em minha obra, gostaria muito de saber quais são — e certamente demonstrarei que são apenas coisas de meu tempo e minha vida, ambos anteriores a essa moda. De resto, como Octavio Paz, não gostaria de dizer aos meus descendentes que eles são pós-pós-pós...
LANZILLOTTI: Elegia de agosto foi premiado em 2006 pela Academia Brasileira de Letras, além de ter obtido o segundo lugar no Jabuti daquele ano. O que esses prêmios representam para sua poesia?
ESPINHEIRA: Creio que são um reconhecimento. Como não sou um poderoso na política da República das Letras, não passando de um nordestino que vive no Nordeste, devo concluir que a obra foi premiada unicamente por sua qualidade literária. Infelizmente, porém, tais premiações não ajudam em nada quanto à vendagem, o que é um fenômeno tipicamente brasileiro. Para piorar, estamos vivendo um tempo acrítico — quase não há crítica literária no país. Há resenhas, mas muitas vezes escritas por pessoas sem preparo para analisar e emitir opinião. E também há muita ação entre amigos — o que é ótimo para a promoção da mediocridade. Meu livro foi triplamente premiado — pois houve também uma Menção Especial da UBE-RJ — e só recebeu uma crítica: a de Miguel Sanches Neto, publicada na Gazeta do Povo, do Paraná, e no Jornal do Brasil. Aliás, Miguel foi também o autor das orelhas do livro. Como ele é um grande crítico — além de poeta, romancista, contista, ensaísta —, fiquei muito honrado com os dois textos. Considero-os, por partirem de escritor como ele, uma consagração.
LANZILLOTTI: Há pouca publicação de poesia no país. Quase sempre os novos escritores lançam seus livros por conta própria. Nada de novo até aí, já que muitos autores fizeram isso no passado, mas a poesia parece estar virando peça de museu. Isso se dá em decorrência da pouca publicação ou pela má qualidade da maioria do que é publicado?
ESPINHEIRA: Sim, alguns dos maiores começaram financiando os próprios livros — como Manuel Bandeira (dinheiro do pai, depois ajuda de amigos), Carlos Drummond de Andrade (descontando do salário) e Mário de Andrade (que pagou suas publicações até quase o fim da vida). Os problemas persistem hoje, pois poesia vende mal. Claro que há poetas que vendem bem — e não são necessariamente os melhores. Aliás, dos poetas que vendem bem, a maioria é de má qualidade. Acontece que o brasileiro não aprende a ler poesia; não sabe distinguir entre o bom e o ruim. Como geralmente o leitor não está preparado para a poesia maior, contenta-se com a menor. Contenta-se até com o que não chega a merecer o nome de poesia — não passando de um emaranhado de linhas irregulares, que esse leitor aceita como verso livre e que, na verdade, não é coisa nenhuma, oscilando entre conversinhas baratas de episódios domésticos, gracinhas, aventurazinhas sexuais e — em último caso — festivais escatológicos. Tudo isso em ritmo frouxo, sem nenhum artesanato, nenhuma técnica poética, nenhum talento. Em termos quantitativos, a má poesia — ou a não poesia — está vencendo. Para inverter esse resultado, seria necessário criar um público leitor mais exigente, o que nossa educação não vem fazendo. De modo geral, nossos leitores só conseguem ler — além de versos de segunda e terceira classes — manuais de autoajuda e best-sellers que repetem velhas fórmulas de sucesso popular. Enfim, os bons poetas dispõem de raros leitores — número insuficiente para comover as editoras... Não havendo uma mudança nessa triste realidade, sem dúvida a poesia — a que merece esse nome — vai mesmo acabar se transformando, neste país, em peça de museu.
LANZILLOTTI: A perda é uma constância em sua obra — diga-se de passagem, alguns de seus mais belos poemas tratam desse tema. Pessoas, sentimentos e espaços — tudo faz parte de um mesmo conjunto de ausências que é revisitado em sua poesia. Existe diferença entre viver e recordar?
ESPINHEIRA: Mais que em meus poemas, a perda é uma constância na vida de todos. Vamos vivendo e perdendo, o que é sempre uma experiência dolorosa. Mas o perdido, como já foi dito, não é o que se vai, o que desaparece; é o que permanece noutra dimensão. Faz pouco tempo, numa entrevista, disse que hoje convivo mais com mortos do que com vivos. Sim, tenho muitos mortos que sempre me visitam e comigo conversam. Não estou falando de espiritismo ou qualquer coisa de valor religioso; estou falando de memória, afeto e afinidades intelectuais e artísticas.
LANZILLOTTI: Bachelard escreveu, em A Poética do devaneio, que “Em sua primitividade psíquica, imaginação e memória aparecem em um complexo indissociável”; “[...] o passado rememorado não é simplesmente um passado da percepção. Já num devaneio, uma vez que nos lembramos, o passado é designado como valor de imagem”. Diante disso, podemos dizer que sua poesia, assim como a de outros poetas, tem raízes no pictórico? É possível diferençar recordação e imaginação?
ESPINHEIRA: Por que pictórico? Já na resposta à primeira pergunta, falei da fabulista memória, do que trata também gente como Bachelard, Proust e Borges. O que a memória não é mesmo é um retrato, pois sua natureza ficcionista está muito mais para recriação e até criação. Assim, a memória é uma contadora de histórias, muito mais um oceano em movimento do que uma pintura. Nunca achei que a memória me abastece com fatos — mas que, de maneira suave ou tempestuosa, amorável ou cruel, conta-me seus contos de Xerazade, em alguns dos quais sou o herói ou o vilão, ou apenas um pobre diabo que perdeu a oportunidade de ser feliz...
LANZILLOTTI: Em várias ocasiões sobressaem poemas em que o espaço fúnebre é utilizado como reflexão sobre a validade do estar vivo, já que todos caminham para o fim. Qual a relação entre a temática da morte e sua poesia?
ESPINHEIRA: Já disse que a morte é nossa angústia maior. Conscientes dela e não encontrando uma explicação para a vida, muito menos um sentido — tirante o sentido que damos a nós mesmos com nosso trabalho, nossos princípios, nossos sonhos etc. —, impossível evitar tais reflexões, questionamentos, perguntas dirigidas aos céus e aos abismos. Como sou poeta, é sobretudo na poesia que visito tais temas. Saio deles perplexo, sem certeza de nada; mas nunca disse, como Manuel Bandeira, que a vida não vale a pena e a dor de ser vivida. Aliás, o mesmo Bandeira escreveu que a vida é um milagre. E eu já falei das magias... E, se há magias, vale a pena, sim.
LANZILLOTTI: São muitos os casos de poetas que também são exímios prosadores; entretanto, uma parte de suas produções acaba suplantando a outra. Poucos sabem, mas Ruy Espinheira Filho é um profícuo escritor de prosa, com várias publicações. Há diferença entre ambas as escritas? Os temas de suas novelas e seus romances são os mesmos dos de seus poemas?
ESPINHEIRA: Escrevo prosa quando é prosa que me sopram as musas. Sou mais conhecido como poeta, mas a prosa está abrindo também seu lugar. Tenho até um prêmio nacional de romance — o Prêmio Rio de Literatura, pelo qual fiquei em segundo lugar (foram três premiados), em 1985, com Ângelo Sobral desce aos infernos. Recentemente, Um rio corre na Lua, que lancei em 2007, ficou entre os semifinalistas do Portugal Telecom. E meu último romance, De paixões e de vampiros: uma história do tempo da era, de 2008, foi considerado uma pequena obra-prima pelo crítico Wilson Martins, do Jornal do Brasil. O grande problema, neste país, é que o poeta não tem o direito de ser romancista — e vice-versa. É mesmo um complexo sul-americano, segundo Júlio Cortázar. Quer dizer: coisa de subdesenvolvido. O cidadão — e o crítico, o intelectual, até mesmo o escritor — vê um romance escrito por alguém que ele conhece como poeta e vai logo dizendo: “Um romance? Ora, mas ele é poeta...” E despreza o livro simplesmente porque é óbvio que o sujeito não pode fazer bem as duas coisas. Outra estupidez é comparar o romance do autor com sua própria poesia — em vez de compará-lo com outros romances, de outros autores, que é o que deve ser feito. Quanto às diferenças entre as escritas, há algumas, sim — sobretudo devido à mais longa duração de um romance e aos ritmos da prosa. Mas esta também vem das musas; é também misteriosa em sua origem. Quanto aos temas, creio que não há diferenças — são os do cotidiano...
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LANZILLOTTI: Heléboro — seu primeiro livro, publicado em 1974 — já traz várias tendências de sua poesia, sobretudo a contenção expressiva e o lirismo elegíaco. A divisão do livro nas seções “Longe de Sirius” e “Música pretérita” revela o mal-estar existente em relação ao que é inatingível como experiência tátil, mas que se busca pela junção entre memória e recriação. O passado acaba tendo, dessa forma, um lugar privilegiado. Qual a relação entre sua poesia e a passagem do tempo?
ESPINHEIRA: Jorge Luis Borges dizia que todos os animais são eternos, menos o homem, porque este possui o conceito de tempo sucessivo — ou seja, tem consciência da passagem do tempo, com o qual leva a vida. A vida, sim; não apenas as coisas — como escreveu Ovídio. Em outras palavras: nos leva à morte. E esta é nossa angústia maior: a consciência da morte. Assim, como todo o mundo, desde cedo me senti participante desse drama. E, como escrevo com a vida, é claro que a consciência do tempo teria de estar presente. Quanto ao passado, é a única coisa que realmente possuímos — e que a fabulista memória vai tornando mais preciosa. Enfim, escrevo com o que há de mais forte em mim: o sentimento do efêmero e a memória. Que é o que somos todos nós: nossa memória; nosso passado. Encerrei o poema “As meninas”, de Julgado do vento, com este verso: “O passado não passa”.
LANZILLOTTI: O senhor lançou livros de crítica sobre Jorge de Lima, Mário de Andrade e Manuel Bandeira. Qual a influência da leitura desses e de outros poetas em sua poesia?
ESPINHEIRA: Influenciaram-me muito os três, pois eram mestres de poesia. No caso do Mário, sua influência foi mais crítica, ensinando-me, por exemplo, que a originalidade está em nós mesmos. Jorge de Lima e Bandeira foram mais mestres de poesia propriamente dita. Mas recebi e recebo a influência de muitos outros autores — como Camões, Drummond, Vinícius, Cecília, Sosígenes Costa, Carlos Pena filho e até Olavo Bilac, para só ficarmos nos escritores de Língua Portuguesa.
LANZILLOTTI: Ainda no que se refere à relação entre memória e passagem do tempo, o senhor, em “Insônia”, escreve “que lembrar é a minha natureza e às vezes/ um desespero”; já em outro poema, afirma que “mais pleno é o perdido, pois o resto/ ainda não se cumpriu”. A recordação de tudo que fora perdido é concomitantemente agonia e bálsamo?
ESPINHEIRA: Lembrar pode ser, mesmo, um desespero — sobretudo por não podermos assumir de forma total esse tempo contemplado, evocado, ou não suportar, como dizia Camões, a grande dor das coisas que passaram. E que, como já foi dito, porque passaram não passam nunca... Sim: a recordação é às vezes bálsamo, às vezes agonia. O outro verso que você citou ilustra o que falei há pouco sobre a memória e o passado: é claro que o que se foi é mais pleno, pois já está inteiramente realizado, cumprido; enquanto o presente e o que podemos chamar de futuro não chegaram a tal realização — ainda se encontram em processo ou apenas em estado de expectativa, anseio, sonho.
LANZILLOTTI: O poema “Elegia de agosto” fala da dor de Drummond diante da perda da filha. Manuel Bandeira publicou um poema homônimo. Coincidência ou não, sua obra poética, em alguns aspectos, evoca temas bandeirianos, partilhados também por outros poetas — quiçá, de toda a poesia. Até aí nada de novo... Enquanto Bandeira fala da vida que poderia ter sido, em sua obra perpassa, ao contrário, uma vida que foi e só volta a partir da recordação — seja esta real, seja fictícia. Qual o papel da recordação em sua poesia? Somente o que fora perdido é realmente nosso para sempre?
ESPINHEIRA: Esta é uma pergunta cheia de perguntas. Drummond viver mais alguns dias só para sofrer com a morte da filha única foi uma tragédia que me comoveu muito, daí o poema. Como o fato se deu em agosto, a elegia só poderia ser de agosto. O poema de Bandeira com título idêntico fala de coisa totalmente diversa e, a meu ver, sem valor poético: sua decepção diante da renúncia de Jânio Quadros. Creio que a segunda pergunta já está parcialmente respondida acima. Quanto a viver (ou reviver) pela recordação, direi que se trata de algo que acontece a todos os humanos. “Recordar é viver”, dizia o velho samba, repetindo um velhíssimo dito popular. Na verdade, todos os escritores, não apenas os poetas, escrevem muito mais com a memória do que com qualquer outro, digamos, encantamento.
LANZILLOTTI: A recordação da mulher amada, em alguns de seus poemas, trata ora de relações envoltas em dor, ora de perfis femininos que lembram semideusas. Outra vertente de sua poesia amorosa, entretanto, fala-nos de certa mulher tangível, humana, e vê o amor como o encontro entre os corpos. Essas duas vertentes caminham juntas no tema amoroso de sua poesia ou a tendência é uma suplantar a outra? É possível as almas se entenderem tão bem quanto os corpos?
ESPINHEIRA: Não me acho diferente dos outros no caso da poesia amorosa. O que acontece é que as mulheres são bruxas — como dizia Nikolai Gogol —, as quais tanto podem ser deusas, semideusas, quanto carne terrestre vibrante de sensualidade. Para mim, as mulheres são capazes de tudo, podem ser tudo, inclusive num só tempo. Sou grato a elas até pelos momentos de angústia, porque esses transes cruciantes também me enriqueceram. Quanto ao entendimento das almas, Manuel Bandeira achava que não era possível — e quem sou eu para discordar do mestre?
LANZILLOTTI: A infância em Jequié e Poções nos é passada como cercada de magia: lugar mítico onde a felicidade fora completa, sobretudo pela presença dos que hoje se encontram ausentes e pela liberdade das brincadeiras ao ar livre. Sobressai, entretanto, a impossibilidade de reviver aqueles momentos, instaurando-se, assim, a tristeza. A infância nessas cidades foi algo fundamental em sua vida, sobretudo como poeta? Qual sua relação com esse período da vida? O menino ainda existe no homem?
ESPINHEIRA: A infância foi em Poções; a adolescência, em Jequié. Houve magia, sim; e muita, nesses meus dois períodos de vida. Na verdade, houve magia em minha vida toda — e ainda há. Às vezes é uma magia cruel, mas magia; pois a vida não tem sentido, não tem lógica. Só a magia pode dar-lhe sentido — o sentido da magia. Nunca aceitei bem a separação que se faz entre sonho e realidade; sinto-me cada vez mais inclinado a concordar com Calderón de la Barca: “La vida es sueño”. Quem me prova que não é?
LANZILLOTTI: Alguns aspectos do pós-moderno estão incluídos em sua obra. Concorda com isso?
ESPINHEIRA: O que é mesmo o pós-moderno? Parece-me, mais do que qualquer coisa, uma dessas modas que de vez em quando assolam o mundo, especialmente as universidades. Moderno sempre foi, por definição, o que é atual, contemporâneo. Assim, se fôssemos pós-modernos, estaríamos vivendo depois da atualidade, adiante do nosso tempo. Fica fácil criar essas modas; é só mexer nas definições, nos conceitos, e inventar à vontade — como já inventaram até o fim da história... Se, como você diz, há aspectos pós-modernos em minha obra, gostaria muito de saber quais são — e certamente demonstrarei que são apenas coisas de meu tempo e minha vida, ambos anteriores a essa moda. De resto, como Octavio Paz, não gostaria de dizer aos meus descendentes que eles são pós-pós-pós...
LANZILLOTTI: Elegia de agosto foi premiado em 2006 pela Academia Brasileira de Letras, além de ter obtido o segundo lugar no Jabuti daquele ano. O que esses prêmios representam para sua poesia?
ESPINHEIRA: Creio que são um reconhecimento. Como não sou um poderoso na política da República das Letras, não passando de um nordestino que vive no Nordeste, devo concluir que a obra foi premiada unicamente por sua qualidade literária. Infelizmente, porém, tais premiações não ajudam em nada quanto à vendagem, o que é um fenômeno tipicamente brasileiro. Para piorar, estamos vivendo um tempo acrítico — quase não há crítica literária no país. Há resenhas, mas muitas vezes escritas por pessoas sem preparo para analisar e emitir opinião. E também há muita ação entre amigos — o que é ótimo para a promoção da mediocridade. Meu livro foi triplamente premiado — pois houve também uma Menção Especial da UBE-RJ — e só recebeu uma crítica: a de Miguel Sanches Neto, publicada na Gazeta do Povo, do Paraná, e no Jornal do Brasil. Aliás, Miguel foi também o autor das orelhas do livro. Como ele é um grande crítico — além de poeta, romancista, contista, ensaísta —, fiquei muito honrado com os dois textos. Considero-os, por partirem de escritor como ele, uma consagração.
LANZILLOTTI: Há pouca publicação de poesia no país. Quase sempre os novos escritores lançam seus livros por conta própria. Nada de novo até aí, já que muitos autores fizeram isso no passado, mas a poesia parece estar virando peça de museu. Isso se dá em decorrência da pouca publicação ou pela má qualidade da maioria do que é publicado?
ESPINHEIRA: Sim, alguns dos maiores começaram financiando os próprios livros — como Manuel Bandeira (dinheiro do pai, depois ajuda de amigos), Carlos Drummond de Andrade (descontando do salário) e Mário de Andrade (que pagou suas publicações até quase o fim da vida). Os problemas persistem hoje, pois poesia vende mal. Claro que há poetas que vendem bem — e não são necessariamente os melhores. Aliás, dos poetas que vendem bem, a maioria é de má qualidade. Acontece que o brasileiro não aprende a ler poesia; não sabe distinguir entre o bom e o ruim. Como geralmente o leitor não está preparado para a poesia maior, contenta-se com a menor. Contenta-se até com o que não chega a merecer o nome de poesia — não passando de um emaranhado de linhas irregulares, que esse leitor aceita como verso livre e que, na verdade, não é coisa nenhuma, oscilando entre conversinhas baratas de episódios domésticos, gracinhas, aventurazinhas sexuais e — em último caso — festivais escatológicos. Tudo isso em ritmo frouxo, sem nenhum artesanato, nenhuma técnica poética, nenhum talento. Em termos quantitativos, a má poesia — ou a não poesia — está vencendo. Para inverter esse resultado, seria necessário criar um público leitor mais exigente, o que nossa educação não vem fazendo. De modo geral, nossos leitores só conseguem ler — além de versos de segunda e terceira classes — manuais de autoajuda e best-sellers que repetem velhas fórmulas de sucesso popular. Enfim, os bons poetas dispõem de raros leitores — número insuficiente para comover as editoras... Não havendo uma mudança nessa triste realidade, sem dúvida a poesia — a que merece esse nome — vai mesmo acabar se transformando, neste país, em peça de museu.
LANZILLOTTI: A perda é uma constância em sua obra — diga-se de passagem, alguns de seus mais belos poemas tratam desse tema. Pessoas, sentimentos e espaços — tudo faz parte de um mesmo conjunto de ausências que é revisitado em sua poesia. Existe diferença entre viver e recordar?
ESPINHEIRA: Mais que em meus poemas, a perda é uma constância na vida de todos. Vamos vivendo e perdendo, o que é sempre uma experiência dolorosa. Mas o perdido, como já foi dito, não é o que se vai, o que desaparece; é o que permanece noutra dimensão. Faz pouco tempo, numa entrevista, disse que hoje convivo mais com mortos do que com vivos. Sim, tenho muitos mortos que sempre me visitam e comigo conversam. Não estou falando de espiritismo ou qualquer coisa de valor religioso; estou falando de memória, afeto e afinidades intelectuais e artísticas.
LANZILLOTTI: Bachelard escreveu, em A Poética do devaneio, que “Em sua primitividade psíquica, imaginação e memória aparecem em um complexo indissociável”; “[...] o passado rememorado não é simplesmente um passado da percepção. Já num devaneio, uma vez que nos lembramos, o passado é designado como valor de imagem”. Diante disso, podemos dizer que sua poesia, assim como a de outros poetas, tem raízes no pictórico? É possível diferençar recordação e imaginação?
ESPINHEIRA: Por que pictórico? Já na resposta à primeira pergunta, falei da fabulista memória, do que trata também gente como Bachelard, Proust e Borges. O que a memória não é mesmo é um retrato, pois sua natureza ficcionista está muito mais para recriação e até criação. Assim, a memória é uma contadora de histórias, muito mais um oceano em movimento do que uma pintura. Nunca achei que a memória me abastece com fatos — mas que, de maneira suave ou tempestuosa, amorável ou cruel, conta-me seus contos de Xerazade, em alguns dos quais sou o herói ou o vilão, ou apenas um pobre diabo que perdeu a oportunidade de ser feliz...
LANZILLOTTI: Em várias ocasiões sobressaem poemas em que o espaço fúnebre é utilizado como reflexão sobre a validade do estar vivo, já que todos caminham para o fim. Qual a relação entre a temática da morte e sua poesia?
ESPINHEIRA: Já disse que a morte é nossa angústia maior. Conscientes dela e não encontrando uma explicação para a vida, muito menos um sentido — tirante o sentido que damos a nós mesmos com nosso trabalho, nossos princípios, nossos sonhos etc. —, impossível evitar tais reflexões, questionamentos, perguntas dirigidas aos céus e aos abismos. Como sou poeta, é sobretudo na poesia que visito tais temas. Saio deles perplexo, sem certeza de nada; mas nunca disse, como Manuel Bandeira, que a vida não vale a pena e a dor de ser vivida. Aliás, o mesmo Bandeira escreveu que a vida é um milagre. E eu já falei das magias... E, se há magias, vale a pena, sim.
LANZILLOTTI: São muitos os casos de poetas que também são exímios prosadores; entretanto, uma parte de suas produções acaba suplantando a outra. Poucos sabem, mas Ruy Espinheira Filho é um profícuo escritor de prosa, com várias publicações. Há diferença entre ambas as escritas? Os temas de suas novelas e seus romances são os mesmos dos de seus poemas?
ESPINHEIRA: Escrevo prosa quando é prosa que me sopram as musas. Sou mais conhecido como poeta, mas a prosa está abrindo também seu lugar. Tenho até um prêmio nacional de romance — o Prêmio Rio de Literatura, pelo qual fiquei em segundo lugar (foram três premiados), em 1985, com Ângelo Sobral desce aos infernos. Recentemente, Um rio corre na Lua, que lancei em 2007, ficou entre os semifinalistas do Portugal Telecom. E meu último romance, De paixões e de vampiros: uma história do tempo da era, de 2008, foi considerado uma pequena obra-prima pelo crítico Wilson Martins, do Jornal do Brasil. O grande problema, neste país, é que o poeta não tem o direito de ser romancista — e vice-versa. É mesmo um complexo sul-americano, segundo Júlio Cortázar. Quer dizer: coisa de subdesenvolvido. O cidadão — e o crítico, o intelectual, até mesmo o escritor — vê um romance escrito por alguém que ele conhece como poeta e vai logo dizendo: “Um romance? Ora, mas ele é poeta...” E despreza o livro simplesmente porque é óbvio que o sujeito não pode fazer bem as duas coisas. Outra estupidez é comparar o romance do autor com sua própria poesia — em vez de compará-lo com outros romances, de outros autores, que é o que deve ser feito. Quanto às diferenças entre as escritas, há algumas, sim — sobretudo devido à mais longa duração de um romance e aos ritmos da prosa. Mas esta também vem das musas; é também misteriosa em sua origem. Quanto aos temas, creio que não há diferenças — são os do cotidiano...
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Luciano Lanzillotti (lmlanzillotti@gmail.com) é pesquisador de doutorado da UFRJ e autor de tese sobre as obras de Ruy Espinheira Filho e Manuel Bandeira. Publicou o poema Eu escrevi cartas de amor na edição #25 do jornal Plástico Bolha e agora vem nos agraciar com esta bela entrevista para Blog do Bolha, pelo qual somos muito gratos.
Luciano Lanzillotti (lmlanzillotti@gmail.com) é pesquisador de doutorado da UFRJ e autor de tese sobre as obras de Ruy Espinheira Filho e Manuel Bandeira. Publicou o poema Eu escrevi cartas de amor na edição #25 do jornal Plástico Bolha e agora vem nos agraciar com esta bela entrevista para Blog do Bolha, pelo qual somos muito gratos.
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3 comentários:
Aventureiro Sexual sobre a frase "aventurazinhas secsuais" diz: é tudo uma questão de Potência e Distância. Os impotentes, mais distantes da vida, vivem falando da morte, nós falamos da vida. de mortos-vivos bastam os poetas, poesia é vida plena.
Adorei a entrevista , e o blog também... Sempre visito o site do Plástico Bolha... Acho a iniciativa de publicar textos de anônimos , super importante para o cenário da Literatura brasileira... É muito bom esse incentivo....
Bjusss!
Pessoas como este "poderoso aventureiro sexual" serão sempre anônimas, encarapuçadas e com este português de última categoria!
Parabéns pela entrevista,
Teca Rizério
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