Pegue, abuse,
deseje. Deseje mais um pouco, inspire, lembre-se de respirar. Sinta, mas com
muita vontade de se apegar. Uma receita simples. Alguns se arriscam a dizer que
até mesmo deplorável, e o que o homem pode dizer no quesito sentir? E pensava
repetidamente na vontade louca de tocar e sentir. Pareciam tão antagônicos para
mim a essas alturas. Não posso dizer com 100% de certeza, mas respirava esse ar
de maré vazia e debruçava meu corpo numa posição dos primórdios do meu ser, a
posição fetal. Sentia-me um dos milhões de grãos de areia na praia, mas
definitivamente não me sentia como as ondas que iam e vinham.
Havia
chegado àquele lugar ainda cedo, as horas se aproximavam das 9 da manhã. O
canto dos pássaros ainda ecoava por algum lugar ao redor. Um feriado. Deveria
gostar, porém, essa sensação de monotonia se mostrara oposto ao meu ser. O que
fazer? Pensava eu inconformado.
Observava
como um estudioso os corpos que naquela praia desfrutavam o que a sociedade
autodenominou de feriado. Uma espécie de banho de sol para quem passava seis
dias da semana encarcerado em qualquer que seja o seu papel social. Eu? Me perguntava: E eu? Nessa altura, sequer sabia onde esse
pronome se encaixava no jogo do bicho. Tentava nesse exato momento surripiar o
máximo de sol possível das peles das pessoas. Posso com isso me auto intitular
de patético, ou ainda, me autodescrever como solitário. Nesse exato momento,
estava deitado sobre a areia analisando os encontros familiares de forma ávida.
Corpos, e mais corpos. Corpos maiores, corpos menores, corpos genéricos de
feminino e masculinos. Eram diferentes corpos bronzeados.
Encarava
intensamente, nesse instante, a sombra ensolarada dos coqueiros. E assim como
os corpos, em algum momento, a desejava. Mas, insistia em me autoflagelar. Estava
me punido por não aproveitar meu único dia de banho de luz por semanas.
Sentia-me como um viciado querendo ser tocado pelas mãos do sol, ansiando pelo
abraço da areia. E encarava profundamente minha necessidade de afeto, como
copos d’água. Por isso, agora fechava os olhos e pensava no som das ondas.
Pegue, sinta, respire, deseje, relaxe, goze, sinta mais uma vez, cobice,
queira, amor? Fogo, água, suor, transpiração, o toque. Era minha programação.
Estava estranhamente programado para a afetividade de querer e ser querido,
tocar e ser tocado, devorar e ser devorado, amar e ser amado. Estava numa
sensação de suspensão de atividades, mas não de pensamentos.
A maré
enchia, e vazava, enchia e vazava. Imaginava nesse momento que talvez fosse um
livro de capa dura que ninguém quisesse ler. E, nesse momento, fazia reflexões
sobre o passado, o contínuo do contínuo, do contínuo do amanhã. E como no
amanhã iria vender minha alma, e não só minha alma, como também minhas ações.
Pensava que se vender ao diabo talvez fosse melhor do que se vender aos homens.
E nessa mistura horrenda de pesadelos da vida real que assombra qualquer homem
moderno, fui levado por aquelas ondas do invisível. Imaginava agora mais uma
vez os corpos nada dóceis, enquadrados em pedaços mórbidos de panos.
Visualizando peças íntimas. Todos escondiam o que todos podiam em algum momento
ver. Eram corpos de sonhos e vergonhas sem sentido. Eram copos d’água vazios.
...
Eu, nesse
momento me encontrava sendo cobiçado e não mais cobiçando. A presa no lugar do
caçador. Fêmeas me encaravam, e como justificativa estava o fato de devolver
esse apetite de curiosidade. E não só devoravam meus olhos. Devoravam minhas
pernas, braços, tronco e falo. Machos,
que se diziam machos, mas seu instinto animal e fome, também me devoravam.
Encontrava-me jogado aos leões. Estava próximo das 4 horas da tarde, e a
ansiedade corroia por detrás dos meus pensamentos afogados.
Os machos
daquele lugar eram animais muito ousados. E não pensem que era espécie
diferente das fêmeas. Eramda mesma espécie, mas com desejos divergentes. Os
machos transmitiam uma ferocidade de dominação. E por falar em dominação, o
interessante de dominar, não é o fato de subjugar o outro, mas de se sentir
soberano entre outros machos. Alguns machos não querem devorar somente a pele,
querem sentir o prazer de encurralar a presa. E agora essa presa era eu. Ou era
o contrário, mas logicamente quando se ouve o elogio mais constrangedor do
mercado:
-Belas
pernas.
Esse
instinto de querer devorar se dispersa, dando espaço ao ciclo de vingança dos
Tupinambás: mesmo sendo devorado, os meus irão vingar-me.Nessas alturas, quem
seriam os meus? Estava eu só, só num feriado, tentando ser querido pelo sol e
aparentemente pelos meus iguais.Contudo, o fato de não me deixar abater, me
tornara o animal mais respeitoso naquele reino feroz. Não queriam me devorar
porque me parecia com uma presa, mas sim porque queriam o prazer de saciar sua
fome e saciar seus desejos. Esse ato foi nomeado pelos brancos de canibalismo.
Ao tentar
entender o mecanismo de funcionamento do canibalismo, fez com que me sentisse o
gentio menos importante da redondeza. O que me levou a ignorar a vozdesse
caçador. Porém, as fêmeas caçavam de uma forma diferente. Essas fêmeas eram
silenciosas. Eram as leoas mais perigosas do reino animal. Elas tentavam me
abocanhar na cruzada de suas pernas. E eram bocas extremamente perigosas! Não
existia profundidade para seu apetite. Assim como eu, elas eram antropofágicas
de sentimentos.Tinham um apetite tão afetivo que procuravam por meio da
antropofagia, a procriação. E, por esse apetite elas se utilizam das artimanhas
mais sórdidas possíveis, como: o aroma, a pintura, o olhar. São as caçadoras
mais eximes que já tinha visto. Desse modo, agora estava exausto do ato de
fugir por essas selvas psicológicas.Então,também as ignorava.
O sol agora
se afastava do seu cume. E nos acalentava com doces lágrimas de adeus. Corpos,
corpos nada dóceis se despediam.E o desejo, vontade, querer não querendo,
afago, o toque, aqui ficava. Eu era um antropofagistade afeto. Um devorador de
sentimentos. Devorava os sentimentos para eles nunca morrerem, mas que se
sentia acuado quando a presa demonstrava a mim, seu interesse pela minha carne
para simplesmente matar sua fome. E nesse jogo de pensamento o meu primeiro
caçador decidiu insistir:
- Belas
pernas.
O pensamento
ainda astuto se mantinha, e como resultado o corpo se mantinha indiferente
exigindo a fuga como resposta. Tentava me afastar fisicamente daquele macho. O
que o meu pensamento não contava era com o ditado que diz: “Quem cala
consente”.
As lágrimas
de despedida do sol eram muito mais frias que as minhas. E o toque da areia
muito mais enfermo que o meu. Fui debruçado abruptamente sobre a areia, as
ondas nesse momento, eram minhas testemunhas. Não havia percebido a estatura do
meu caçador. Homem de aproximadamente 1,90m, com seus 90 kg bem torneados. Seu
hálito alcoólico, sua barba por fazer e sua sunga branca cheia por prazer, sua
pele que almejou o sol tanto quanto a minha pele, um canibal nato, um
antropólogo branco inexperiente, um animal de aparentemente 26 anos. Com
grandes e profundos olhos famintos.
A mente
gritava como meu corpo. Em instantes estava despido de uma forma dolorida. O
pensamento de caos me atravessava, sentia-me dolorido, envergonhado, confundia
essa vergonha com a culpa de me deixar ser violado. Arfava contra vontade, a
consciência se pareceu turva. O corpo não deixava de lutar, quando seu músculo
rígido, forçosamente adentrou por entre minhas entranhas no mais íntimo do ego.
A dor atravessava por entre minhas pernas, a dor atravessa por entre o meu eu,
um eu que não mais importava uma singularidade, que não mais interessava a vida
e nem a ninguém. Acreditei nesse momento rogar intensamente a Deus uma súplica
de ajuda. Um Deus que não me atendeu, nem rogou por mim.Quando meus pensamentos
atravessavam as minhas lágrimas e gemidos doloridos: O antropofágico de afetivo
vira presa do antropólogo canibal; corposchoram, sentem e são violados. Quando
fui preenchido em meio ao vazio.
...
O tempo não
mais passava. Só havia a sonoridade das ondas e o respirar pesado do meu
caçador. O ar pesava sobre nossos corpos, ou melhor, sobre o corpo dele e sobre
mim um copo d’água vazio. Seu membro agora flácido se recolhia do aconchego do
meu eu. E num movimento relativamente rápido, se lançou ao lado, arfando de
cansaço, resolvendo depois de instantes, acomodar-se melhor e sentar-se de
frente ao meu corpo, que estava parado e estaticamente tremulo.
O meu
caçador agora estava aliviado. E agradecia aos deuses por seu desejo saciado.
Quanto a mim? Envergonhado tateava o estrago que fora feito ao meu ego. Via
nesse momento em minha mão uma mistura de líquidos, o esperma, o sangue e
sentia a dor de estar vazio. Quando meu caçador pouco a pouco recobrara o mínimo
de sanidade. Ele me encarava como se desejasse garantir o estrago. De repente,
pude adivinhar o que nesse exato momento passava pela sua mente, pelo seu olhar
malicioso. Meu caçador me analisava:
homem negro, ou será um adolescente com ascendência indígena? Aparentava ter 15
anos, ainda possuía o olhar de pureza e aquele ar de ousadia, deveria ter seus
1,64 m e pesar uns 61 kg. De fato esse era eu. Morava próximo àquela praia e
por ter crescido naquela região, os meus pais não tinham medo de deixar-me ir à
praia só.
Meu caçador
demonstrava uma camaradagem de só quem é conterrâneo pode sentir. Só quem mora
no mesmo país, estado, cidade e vizinhança podem sentir. Aquele macho era um
amicíssimo de minha então intitulada família, era o irmão que minha mãenão
tinha, ele agora era o que a racionalidade jamais deveria expressar. Ele
demonstrava uma felicidade de criança pura por detrás daquele sorriso torto.
Era um desejo que existia hámuito tempo e foi reprimido, era uma fome
subversiva, era a vontade de quem estava cheio e queria muito mais, era a gula.
Estava
petrificado, quando me atormentou uma sensação de lembrança muito nítida para
isola-la. Lembro-mebem, ele esteve nas minhas festas de aniversário desde sua
chegada ao meu bairro, ele ria, brincava, bebia e bradava cantigas de parabéns.
Cumprimentou-me com sua família diversas vezes. Uma fêmea branca infeliz, que
não sabia mais o que era ser desejada. E um filhote que muito se parecia com a
mãe, embora, também fosse filhote daquele macho. Ele tinha o olhar tão triste e
sofrido quanto o da mãe. Assim como eu, ele agora deveria ter 15 anos. Aquele
filhote meu Deus, era brasileiro que nem eu! Ele estava vazio como estou agora,
ele era apático como sou agora, ela era tudo o que em instantes me tornei.E então
desmanchei por entre aquela memória, a ânsia de vomitar a minha dor era
inevitável. A voz falhou novamente, me sentia imundo. Quando voltei todo meu
corpo àquele macho. Fixei meu olhar para o olhar obscuro daquele animal. E
assim como eu, ele teve certeza do que se passava pela minha mente.
...
Após me dar
conta, um arrepio gritava por entre meu dorso. O suor tão gélido quanto podia
ser, escorria. O frio das mínimas gotículas de chuva demonstrava a afetividade
térmica entre minha pele e suas gotas. O sangue ainda emanava por entre minhas
pernas misturado com aquele líquido branco que, agora aparentava estar mais
ralo e transparente. Não tinha força para me mexer. Todo meu corpo tremia por
conta da violência. Eolhando para meu caçador, senti um afeto sombrio, o tipo
de afeto que só quem é violado sabe bem. O pior ainda estava por vir.
Meu caçador
de forma ávida se põe sobre mim, vira-me para encara-lo bem. Roga frases tão
ternas quanto uma carta sem sentido de um suicida. Com as mãos sobre meu pescoço,
apertava-me de uma forma tão poética quanto aquele local: Areia alva, coqueiros
um pouco acima como se anunciassem a fronteira da praia com a terra firme. Maré
vazante, céu crepuscular, uma nuvem de chuva passageira que insistia em
dissipar as pessoas para longe daquele local, o sol nos acalentando de um calor
que só podemos comparar ao amor de uma mãe para com seu filho. E um arco-íris
bem acima do meu caçador que parecia sorrir para mim por entre suas cores, como
o de meu pai, dado a mim ao nascer. E ao
fundo, tocava o soneto das ondas vindo e indo. Definitivamente, não me sentia
como aquelas ondas que se moviam livremente, me sentia como uma pedra estanque
e sem vida. O meu caçador de forma performática recitava, escarrava o típico
hino nacional que parecia falar de outroanimal.
-Você gostou
viadinho! Você gostou!
Sentia por
entre meu pranto, o veemente ardor que invadia o meu pulmão pela falta de ar.
Tentava balbuciar palavras, mas sufocava-me pela falta de singularidade. Sentia
cada toque daqueles dedos, a interseção entre o polegar e o indicadora
sonegar-me a tão cobiçada liberdade, e seus dedos que almejavam tocar-mecom a
mesma concretude de só quem ama pode fazer. Nesse momento, entendia o que era o
amor. Ao mesmo tempo em que seus dedos me arranhavam e tinham a intenção de
quebrar o meu pescoço. E, nesse momento, entendi o que era querer algo. E então
peguei fortemente os braços daquele macho enquanto afundava na areia daquela
praia. Mas, já nada mais podia fazer. O encarava não mais por medo. Era
doloroso ser querido, era doloroso ser querido, era doloroso ser querido e não
poder querer.
Eu o
encarava por querer que seu ato de carinho acabasse. Pouco a pouco, senti um
sono leve. O doce e peculiar aroma do nada a gritar horrores em minha mente.
Larguei carinhosamente aqueles braços. Senti uma pressão enorme dentro do meu
crânio, senti meus olhos estufarem, senti a dor de estar sendo amado. Meu
pulmão e coração doíam de uma maneira única, jamais havia sentido tal dor. O
sangue ainda escorria pelo meu orifício anal. Urinei-me como um recém-nascido
que não sabia o que era urinar, chorei a última lágrima silenciosamente. Quando
por fim...
...
Acordei aos
prantos e berros. Minha mãe adentrou por entre meu quarto em busca de uma
explicação.
- O que foi
meu filho?
- Nada
mamãe. Outro pesadelo!
- Você anda
tendo muitos pesadelos! Também, fica nesse quarto assistindo filmes de
monstros, de bicho Papão. (risos).
Calado
assenti enquanto enxergava meu pai a analisar-me. O olhar era malicioso. Como
em meu sonho, gostaria que esses atos de amor fossem corriqueiros. Infelizmente
não era um adolescente, não podia lutar. Tinha 10 anos e, desde os meus 8 anos,
papai brinca comigo de marido e mulher, segundo ele. Como dizer para mamãe que
o bicho papão eu chamo todo dia de papai?
Juan Messias
Um comentário:
Magnífica obra ! Bela !
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