Estamos, aqui,
convidados para um banquete. Recomendaram-nos ler poemas e preparar falas sobre
nossas leituras. Este contraponto entre comida e palavras lembra a estratégia
do filósofo Gilles Deleuze de discutir a “lógica do sentido”, explorando a
dualidade corpos / linguagem. Conforme a história da filosofia, os antigos
serviram-se dos elementos materiais para instrumentalizar o pensamento,
prenderam-se à profundidade, onde os corpos se transformam e se afetam uns aos
outros: Heráclito formulou o conceito de tempo observando o movimento da água;
já Parmênides inspirou-se na terra e no fogo como causa principal na
constituição do cosmos. Numa etapa mais sofisticada do ato de conhecer, quando
se desejou distinguir o mythos do logos, Platão empreendeu o movimento
ascensional e determinou que os significados se prendessem às ideias
transcendentes, de que os corpos do mundo não passavam de cópias. Por seu
turno, os sofistas – em particular, os estóicos – empreenderam aventura mais
arriscada, experimentaram a superfície como espaço da operação da doação de
sentido. Trataram suas elocubrações como “acontecimentos”, resultados de gestos
deslizantes, na linha horizontal que limita, abaixo, os seres corpóreos, e
acima, a linguagem, formada de extra-seres incorpóreos. Nessa linha estreita e
instigante, é que Deleuze surpreende o “sentido”, resultado paradoxal de
quase-causas que, negando as operações da profundidade (designação e
manifestação) e da altura (significação), afirmam o sentido. Para tornar
contemporâneo esse legado epistemológico dos antigos, Deleuze evoca poetas
modernos às voltas com as “séries da oralidade”—comer / falar. De um lado, traz
Artaud, preso às profundezas do corpo, escrevendo como se mastigasse as
palavras. De outro, considera Lewis Carroll, que trouxe suas personagens
fantásticas para a superfície do espelho. Aí, não há devoração nem
transformações. O nonsense da
superfície constrói-se na reversibilidade das direções e na simultaneidade dos
tempos.
Imagino que os
jovens poetas, reunidos neste “banquete experimental”, mesmo que não
radicalizem sua relação com a tradição poética, nem se dediquem aos jogos de
questionamento das significações estabelecidas, pratiquem os exercícios do
humor, resistindo às agressões sombrias do presente.Vou-me arriscar propondo
minha leitura de trechos escolhidos de alguns deles.
Interessado em
escapar das convenções do senso comum e do bom senso, Lucas Matos também se
dedica à invenção poética e performatiza a dualidade falar-comer:
em pedaços
[...]
CONVIDEI UM PAR de
amigos para o almoço
comprei berinjelas
batatas
baroas para o purê
pimentões
gengibre abóbora
chegaram
enquanto eu ainda estava
na cozinha mãos de cebola e alho
ele trouxe um kiwi congelado
para suco ou sorvete os dois
ficaram na cozinha sentados
no chão ou debruçados na parede
conversando enquanto eu
terminava então fui tomar
banho depois comemos na sala
[...]
foi que ele lembrou
da história do avô de uma
amiga da amiga
que sem ter com
quem conversar telefonava
para serviços de atendimento
ao cliente para reclamar
de coisas como o aumento
do preço do pacote de pão
[...]
comemos bis e tentamos
tomar o suco de kiwi na hora
da sobremesa quando eles se
foram já estava escuro
e tinha muita louça para lavar
(Matos, junho 2017, p. 29, 30)
enquanto eu ainda estava
na cozinha mãos de cebola e alho
ele trouxe um kiwi congelado
para suco ou sorvete os dois
ficaram na cozinha sentados
no chão ou debruçados na parede
conversando enquanto eu
terminava então fui tomar
banho depois comemos na sala
[...]
foi que ele lembrou
da história do avô de uma
amiga da amiga
que sem ter com
quem conversar telefonava
para serviços de atendimento
ao cliente para reclamar
de coisas como o aumento
do preço do pacote de pão
[...]
comemos bis e tentamos
tomar o suco de kiwi na hora
da sobremesa quando eles se
foram já estava escuro
e tinha muita louça para lavar
(Matos, junho 2017, p. 29, 30)
Não se pode dizer
que a amostra dos “pedaços” de poesia, tratando de comida e conversa, seja tão
atraída pelas vísceras profundas que chegue a mastigar as palavras. No entanto,
sem que tenha suprimido letras ou insistido em sons guturais, o leitor do poema
é captado, inevitavelmente, por sua materialidade. O corte dos versos insiste
no atropelo da sintaxe e separa sujeito de verbo, adjetivo de substantivo,
verbo de complemento. Aqui, a aparente experiência de tratar o banal com a
solenidade da arte desenvolve o procedimento ambíguo de desafiar a gramática, mesmo
usando ordem direta e obedecendo aos regimes nominais e verbais. O coloquial
mais rasteiro se complexifica, em estranhamento, impedindo que o poema aconteça
apenas oralmente. Sua inscrição na página torna-se obrigatória. O leitor é
conduzido, até quase a vertigem (o poema é longo), do fundamento material, onde
os tipos se inscrevem na página, para as alturas da significação, que os grupos
de letras produzem. Em voz alta ou silenciosamente, a leitura exige saltos
constantes, tornando inviável a suposta tranquilidade de uma conversa durante o
almoço e demonstrando, na prática, a impossibilidade de que as relações verbais
se processem inconscientemente como a digestão. Assim, revela-se, tão
sub-reptíciaquanto perigosa, a distância entre o corpo e a linguagem, entre a
designação e a expressão. O rigor cruel da construção do poema fica patente na
justaposição dos “pedaços” de que se compõe: a conversa afável dos amigos que
se visitam, trocando gentilezas, é desmentida pelo assunto de que tratam. A
troca de mensagens, levando ou não a consequências positivas, só se dá em
situações previstas pela lei ou pelos interesses comerciais. A escuta atenta,
que se espera, ao invés de uma tendência
afetiva, vem de uma previsão mecânica num texto decorado por um profissional.
Atento às tecnologias características do presente, Lucas Matos percebe que o
humor negro independe de monstros violentos. Ao contrário, surge, veemente e
necessário, nas circunstâncias mais comuns, nas frases mais diretas, completas
e corriqueiras.
No mesmo volume 2
dos Cadernos do CEP, Ana Carolina
Assis usa estratégias composicionais bem mais complicadas com o objetivo
paralelo de experimentar a tensão entre os corpos e a linguagem. Com um título
em feminino -- “Mariana” -- que tanto pode nomear uma menina ou uma mulher como
um local no campo ou na cidade, vai traçando uma cena familiar e surreal. Seu
exercício poético fascina e ameaça. É um poema “em pânico”. E foi o próprio
Murilo Mendes que garantiu: “o pânico é muitas vezes necessário” (Mendes, 2010,
p. 37).
Mariana
a criança
olhos de gafanhoto
água
às vezes deixa um cheiro de
bicho nas coisas
bicho nas coisas
carne pouca pra tanto
lodo
bicho
– água que escorre dentro d’água
a garganta
groselha rala das
lancheiras
caramelo
viscoso de rio
surpresa crosta das
cartilhas
estufado
piso e farpa dos móveis
as coxas – malha puída
de nova
que uma barba crespa
rasga
e carrega nos ombros
parecem bombas a mãe dizia
parecem bombas de sucção a mãe dizia
os ralos regurgitando carne e atraso pros jantares
devolvendo a gelatina das coisas
exigindo dos tijolos o que eles não tinham
parecem sangue do meu sangue a mãe dizia
que uma barba crespa
rasga
e carrega nos ombros
parecem bombas a mãe dizia
parecem bombas de sucção a mãe dizia
os ralos regurgitando carne e atraso pros jantares
devolvendo a gelatina das coisas
exigindo dos tijolos o que eles não tinham
parecem sangue do meu sangue a mãe dizia
(Assis,
junho 2017, p.6,7)
O vocabulário
escolhido para compor a cena remete, sem dúvida, à profundidade dos corpos. As
frases – ora quebradas em versos muito curtos, ora encadeando-se em versos
longos – indicam invasões, contaminações. Predominam elementos líquidos ou
pastosos que levam ao apodrecimento, à decadência. O ambiente turvo contrasta com
a (possível) vitalidade da personagem – “criança”. No entanto, seus objetos
escolares (“lancheira”, “cartilhas”) estão à beira de deteriorar-se na umidade
reinante. Até a proximidade entre os corpos humanos mostra-se agressiva: as
“coxas”, a “malha” se rasgam em contato com a “barba crespa”. Sílabas iniciadas
por gutural espalham-se pelo poema, assim como as matérias viscosas
(“caramelo”, “gelatina”, “sangue”) se insinuam por entre os sólidos. Esse
espaço, tanto quanto a criança que vive nele com sua família, enfrentam o
perigo do atolamento ou da sucção. Em sua crueza, a vida é uma ameaça.
O atropelo das
imagens, que compõem o movimento das cenas, evoca o não senso das entranhas, da
profundidade. No entanto, o corte e a distribuição dos versos na página não
desfiguram as expressões aí inscritas. Também, diferente do que se espera, as
indicações de tempo, em conjunto, fogem a qualquer cronologia, por isso, subvertem
o processo das evoluções ou involuções.Coincidem, inesperadamente, o tempo do
apodrecimento das partes da casa com o tempo da rotina familiar – a ida para a
escola, os “jantares” –, como se ações e paixões surgissem em ritmo de “devir
louco”. O contraste, evidente, entre os movimentos no espaço e o tempo das
personagens parece deslocar o poema das indistinções profundas às
singularidades deslizantes da superfície. Assim, poder-se-ia captar a
instauração de efeitos paradoxais que resultam em humor. O pathos trágico reverte-se em apreensão crítica.
Trabalho artístico
equivalente, onde as séries da oralidade – comer / falar –,’ parecendo
tendentes à predominância da primeira, acabam mostrando deslocamentos entre uma
e outra, encontra-se em poema assinado por Rafael Zacca, no 1º volume dos Cadernos do CEP:
tarda
Uma barca leva uma pedra
ou um sol de flores
engastadas
em poeira
sobre a pele oleosa
um aceno
como sabão
das crianças
em tardes
de primavera
a primeira
apenas uma
pedra
que se abre
dura lembrança das crianças
que abrem
cocos e lambuzam já não se sabe
cocos e lambuzam já não se sabe
se o queixo ou as mãos
pequenas.
Amargo é retornar
a gordura à boca
mas não seriam
amargos
os poemas de
agora postos
sobre a mesa e as
conversas
meladas
como amoras
na boca.
(Zacca,
maio 2017, p. 24, 25)
Tão distante da
coloquialidade cotidiana quanto a escrita de Ana Carolina, esta experiência
artística também se produz em certo clima solene e desconfortável. Desenha
frases que se aproximam da textura incômoda dos corpos em busca do prazer
eventualmente possível na prática da poesia. Embora sem polarizar os dois
espaços – o que se poderia tomar como a significação sublime da arte, em
oposição à designação dos corpos com suas vísceras profundas --, o poema se
desloca entre um e outro, a partir da perspectiva do tempo. O emprego de uma
forma verbal como título constitui procedimento incomume sugere uma leitura
atenta ao que escapa às convenções. Sendo assim, a cronologia -- dependente das
significações estabelecidas -- cede lugar à materialidade do vocábulo “tarda”,
desencadeador de assonâncias: as vogais abertas (‘tarda’, ‘barca’, ‘leva’,
‘pedra’, ‘sol’, ‘engastadas’), que, ao longo do texto, retornam em alternância
com vogais fechadas e nasais. Paralelamente, as aliterações (em dentais,
bilabiais e sibilantes) compõem uma imagem sonora potente, superposta às
imagens visuais propostas pela articulação – marcadamente surrealista – entre
os significados do vocabulário empregado. Parece que a superposição das imagens
sonoras -- reforçadas pela distribuição gráfica da página – às imagens
plásticas opera o duplo movimento de descida das formas estéticas ideais e de subida
dos sons e texturas pegajosas (oleosidade, ‘poeira’, consistência ‘melada’ que
‘lambuza’), instalando a escrita na superfície. Pode-se, então, perceber, na
reiteração do signo “crianças” --com suas conotações de ‘jogo’ e ‘brincadeira’
-- um deslizamento, alegre e cruel, entre o gosto (amargo, gorduroso), que sobe
das entranhas à boca, e as “lembranças”, “poemas” e “conversas”, lançados
“sobre a mesa”. Seguindo a orientação deleuziana, para além dos efeitos
trágicos ou irônicos, esse deslizamento na superfície produz o humor paradoxal.
Se os efeitos desse jogo intrincado ‘tardam’, é porque se mostram extemporâneos.
Ainda no 1º volume
dos Cadernos do CEP, Maria Isabel
Iorio inclui uma releitura – em
homenagem? como paródia para descarte? num retorno desviante? – de um clássico
drummondiano do
humor modernista:
virilha
João era Teresa que era Raimundo
que era Maria que era
Joaquim que era Lili
que não era ninguém.
João foi para os Estados
Unidos, Teresa para as estatísticas,
Raimundo morreu de pancada,
Maria ficou para a fila,
Joaquim suicidou-se e Lili
ainda é chamada de
J. Pinto Fernandes como toda
essa gente que não entra na
História.
História.
(Iorio, maio, 2017, p. 19)
Apresentando-se como
estratégia experimental distante de “Mariana” e “tarda” – escritas de um humor
fantástico, que investe contra o real histórico por meio de um tenso contraste
crítico --, “virilha” tende a aproximar-se de “em pedaços”, radicalizando o emprego
do coloquial através da repetição em diferença de um texto antológico, que
qualquer leitor é capaz de reconhecer. Se Drummond parodiava a lírica
romântica, num gesto, que hoje nos soa como simples inversão, Maria Isabel
Iorio é, possivelmente, mais séria e desabusada, pois homenageia o mestre
subvertendo suas referências ético-sociais. Se, no contemporâneo, acirram-se as
questões de gênero, etnia, identidade e pertencimento a uma nacionalidade, o
novo poema afirma que não se trata mais de uma “quadrilha”, onde se troca de
par, mas de uma virada mais complexa. O título “virilha” aponta para
significados múltiplos: parte do corpo geralmente sexualizada, reversão sem
objetivo definido, devir constante em lugar de metamorfose ou até mesmo (com
grafia ligeiramente modificada) uma das combinações de sílabas que, a certa
altura, nomearam a personagem de “Desenredo” de Guimarães Rosa, aquela que
mudava de amores e se mostrava outra a cada parágrafo da estória. Enquanto as
vanguardas exigiam liberdade de escolha e ampliação do conceito de arte, a
violência do cotidiano atual, nos vários níveis de relações, exige que se
flexibilizem os critérios de identificação e se reivindiquem serviços públicos
e visibilidade para os habitantes das diferentes margens. Os traços irônicos,
que eventualmente ainda restassem na “Quadrilha” moderna, foram ‘virados’ no
humor cruel, onde as histórias (estórias) se confundem com a “História”.
Na Lógica do sentido, que me serviu de
referência, buscam-se linhas de fuga à tradição do pensamento ocidental. Por
isso mesmo, seu interesse se volta para o “humor”, distinto da “ironia”,trabalhada
pela escrita dos filósofos canônicos. Em suas
três versões – socrática, clássica e romântica --, a “ironia” volta-se
para as alturas transcendentes (em contraponto à profundidade dos corpos),
apegada, em cada período, a uma das dimensões da proposição: significação,
designação e manifestação. Escapa a esta linhagem o “sábio estóico”, que
empreende a “dupla destituição da altura e da profundidade em proveito da
superfície”. “[...] mais tarde e em outro contexto”, pode-se acompanhar a
trajetória do Zen “—contra as profundidades bramânicas e as altitudes búdicas.
Os célebres problemas-provas, as perguntas-respostas, os koan, demonstram o absurdo das significações, mostram o não-senso
das designações” (Deleuze, 1974, p. 139). Companheiro do sábio estóico e do
cultor do Zen, o poeta – especialmente desde Mallarmé – também empreende
ascensões e descidas em direção à “superfície” da linguagem, onde acontece a
“aventura do humor”.
Referências:
ASSIS, Ana Carolina de. “Mariana”. In: CHACAL,
DIBLASI, I., KLIEN, J., LAMPREIA, S. Cadernos do CEP, v. 2, Rio de Janeiro,
junho de 2017.
DELEUZE, Gilles. Lógica
do sentido. Trad. Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo: Perspectiva,
1974.
DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1967.
IORIO, Maria Isabel. “virilha”. In: CHACAL, DIBLASI,
I., KLIEN, J., LAMPREIA, S. Cadernos do
CEP, v. 1, Rio de Janeiro, maio de 2017.
MATOS, Lucas. ”em pedaços”. In: CHACAL, DIBLASI, I.,
KLIEN, J., LAMPREIA, S. Cadernos do CEP,
v. 2. Rio de Janeiro, junho de 2017.
MENDES, Murilo. In: LIMA, Jorge de. A pintura em pânico; fotomontagens. Rio
de Janeiro: Caixa Cultural, 2010.
ZACCA, Rafael. “tarda”. In: CHACAL, DIBLASI, I.,
KLIEN, J., LAMPREIA, S. cadernos do CEP,
v. 1, Rio de Janeiro, maio de 2017.
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