quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

Reinvenções poéticas pelo humor


Estamos, aqui, convidados para um banquete. Recomendaram-nos ler poemas e preparar falas sobre nossas leituras. Este contraponto entre comida e palavras lembra a estratégia do filósofo Gilles Deleuze de discutir a “lógica do sentido”, explorando a dualidade corpos / linguagem. Conforme a história da filosofia, os antigos serviram-se dos elementos materiais para instrumentalizar o pensamento, prenderam-se à profundidade, onde os corpos se transformam e se afetam uns aos outros: Heráclito formulou o conceito de tempo observando o movimento da água; já Parmênides inspirou-se na terra e no fogo como causa principal na constituição do cosmos. Numa etapa mais sofisticada do ato de conhecer, quando se desejou distinguir o mythos do logos, Platão empreendeu o movimento ascensional e determinou que os significados se prendessem às ideias transcendentes, de que os corpos do mundo não passavam de cópias. Por seu turno, os sofistas – em particular, os estóicos – empreenderam aventura mais arriscada, experimentaram a superfície como espaço da operação da doação de sentido. Trataram suas elocubrações como “acontecimentos”, resultados de gestos deslizantes, na linha horizontal que limita, abaixo, os seres corpóreos, e acima, a linguagem, formada de extra-seres incorpóreos. Nessa linha estreita e instigante, é que Deleuze surpreende o “sentido”, resultado paradoxal de quase-causas que, negando as operações da profundidade (designação e manifestação) e da altura (significação), afirmam o sentido. Para tornar contemporâneo esse legado epistemológico dos antigos, Deleuze evoca poetas modernos às voltas com as “séries da oralidade”—comer / falar. De um lado, traz Artaud, preso às profundezas do corpo, escrevendo como se mastigasse as palavras. De outro, considera Lewis Carroll, que trouxe suas personagens fantásticas para a superfície do espelho. Aí, não há devoração nem transformações. O nonsense da superfície constrói-se na reversibilidade das direções e na simultaneidade dos tempos.

Imagino que os jovens poetas, reunidos neste “banquete experimental”, mesmo que não radicalizem sua relação com a tradição poética, nem se dediquem aos jogos de questionamento das significações estabelecidas, pratiquem os exercícios do humor, resistindo às agressões sombrias do presente.Vou-me arriscar propondo minha leitura de trechos escolhidos de alguns deles.

Interessado em escapar das convenções do senso comum e do bom senso, Lucas Matos também se dedica à invenção poética e performatiza a dualidade falar-comer:
                       
em pedaços
[...]
CONVIDEI UM PAR de amigos para o almoço
comprei berinjelas batatas
baroas para o purê pimentões
gengibre abóbora chegaram
enquanto eu ainda estava
na cozinha mãos de cebola e alho
ele trouxe um kiwi congelado
para suco ou sorvete os dois
ficaram na cozinha sentados
no chão ou debruçados na parede
conversando enquanto eu
terminava então fui tomar
banho depois comemos na sala
[...]
foi que ele lembrou
da história do avô de uma
amiga da amiga
que sem ter com
quem conversar telefonava
para serviços de atendimento
ao cliente para reclamar
de coisas como o aumento
do preço do pacote de pão
[...]
comemos bis e tentamos
tomar o suco de kiwi na hora
da sobremesa quando eles se
foram já estava escuro
e tinha muita louça para lavar

(Matos, junho 2017, p. 29, 30)

Não se pode dizer que a amostra dos “pedaços” de poesia, tratando de comida e conversa, seja tão atraída pelas vísceras profundas que chegue a mastigar as palavras. No entanto, sem que tenha suprimido letras ou insistido em sons guturais, o leitor do poema é captado, inevitavelmente, por sua materialidade. O corte dos versos insiste no atropelo da sintaxe e separa sujeito de verbo, adjetivo de substantivo, verbo de complemento. Aqui, a aparente experiência de tratar o banal com a solenidade da arte desenvolve o procedimento ambíguo de desafiar a gramática, mesmo usando ordem direta e obedecendo aos regimes nominais e verbais. O coloquial mais rasteiro se complexifica, em estranhamento, impedindo que o poema aconteça apenas oralmente. Sua inscrição na página torna-se obrigatória. O leitor é conduzido, até quase a vertigem (o poema é longo), do fundamento material, onde os tipos se inscrevem na página, para as alturas da significação, que os grupos de letras produzem. Em voz alta ou silenciosamente, a leitura exige saltos constantes, tornando inviável a suposta tranquilidade de uma conversa durante o almoço e demonstrando, na prática, a impossibilidade de que as relações verbais se processem inconscientemente como a digestão. Assim, revela-se, tão sub-reptíciaquanto perigosa, a distância entre o corpo e a linguagem, entre a designação e a expressão. O rigor cruel da construção do poema fica patente na justaposição dos “pedaços” de que se compõe: a conversa afável dos amigos que se visitam, trocando gentilezas, é desmentida pelo assunto de que tratam. A troca de mensagens, levando ou não a consequências positivas, só se dá em situações previstas pela lei ou pelos interesses comerciais. A escuta atenta, que se espera, ao invés  de uma tendência afetiva, vem de uma previsão mecânica num texto decorado por um profissional. Atento às tecnologias características do presente, Lucas Matos percebe que o humor negro independe de monstros violentos. Ao contrário, surge, veemente e necessário, nas circunstâncias mais comuns, nas frases mais diretas, completas e corriqueiras.

No mesmo volume 2 dos Cadernos do CEP, Ana Carolina Assis usa estratégias composicionais bem mais complicadas com o objetivo paralelo de experimentar a tensão entre os corpos e a linguagem. Com um título em feminino -- “Mariana” -- que tanto pode nomear uma menina ou uma mulher como um local no campo ou na cidade, vai traçando uma cena familiar e surreal. Seu exercício poético fascina e ameaça. É um poema “em pânico”. E foi o próprio Murilo Mendes que garantiu: “o pânico é muitas vezes necessário” (Mendes, 2010, p. 37). 

Mariana
a criança
olhos de gafanhoto
                             água às vezes deixa um cheiro de
bicho nas coisas
carne pouca pra tanto lodo
                         bicho – água que escorre dentro d’água
a garganta
groselha rala das lancheiras
                            caramelo viscoso de rio
surpresa crosta das cartilhas
                               estufado piso e farpa dos móveis
as coxas – malha puída de nova
que uma barba crespa
rasga
e carrega nos ombros

parecem bombas a mãe dizia

parecem bombas de sucção a mãe dizia
os ralos regurgitando carne e atraso pros jantares
devolvendo a gelatina das coisas
exigindo dos tijolos o que eles não tinham
parecem sangue do meu sangue a mãe dizia

(Assis, junho 2017, p.6,7)

O vocabulário escolhido para compor a cena remete, sem dúvida, à profundidade dos corpos. As frases – ora quebradas em versos muito curtos, ora encadeando-se em versos longos – indicam invasões, contaminações. Predominam elementos líquidos ou pastosos que levam ao apodrecimento, à decadência. O ambiente turvo contrasta com a (possível) vitalidade da personagem – “criança”. No entanto, seus objetos escolares (“lancheira”, “cartilhas”) estão à beira de deteriorar-se na umidade reinante. Até a proximidade entre os corpos humanos mostra-se agressiva: as “coxas”, a “malha” se rasgam em contato com a “barba crespa”. Sílabas iniciadas por gutural espalham-se pelo poema, assim como as matérias viscosas (“caramelo”, “gelatina”, “sangue”) se insinuam por entre os sólidos. Esse espaço, tanto quanto a criança que vive nele com sua família, enfrentam o perigo do atolamento ou da sucção. Em sua crueza, a vida é uma ameaça.

O atropelo das imagens, que compõem o movimento das cenas, evoca o não senso das entranhas, da profundidade. No entanto, o corte e a distribuição dos versos na página não desfiguram as expressões aí inscritas. Também, diferente do que se espera, as indicações de tempo, em conjunto, fogem a qualquer cronologia, por isso, subvertem o processo das evoluções ou involuções.Coincidem, inesperadamente, o tempo do apodrecimento das partes da casa com o tempo da rotina familiar – a ida para a escola, os “jantares” –, como se ações e paixões surgissem em ritmo de “devir louco”. O contraste, evidente, entre os movimentos no espaço e o tempo das personagens parece deslocar o poema das indistinções profundas às singularidades deslizantes da superfície. Assim, poder-se-ia captar a instauração de efeitos paradoxais que resultam em humor. O pathos trágico reverte-se em apreensão crítica.

Trabalho artístico equivalente, onde as séries da oralidade – comer / falar –,’ parecendo tendentes à predominância da primeira, acabam mostrando deslocamentos entre uma e outra, encontra-se em poema assinado por Rafael Zacca, no 1º volume dos Cadernos do CEP:

tarda
Uma barca leva uma pedra
ou um sol de flores engastadas
em poeira
sobre a pele oleosa

um aceno       
como sabão das crianças
em tardes
de primavera a primeira

apenas uma

pedra

que se abre

dura lembrança das crianças que abrem
cocos e lambuzam já não se sabe
se o queixo ou as mãos
pequenas.

Amargo é retornar
a gordura à boca

mas não seriam
amargos
os poemas de
agora postos
sobre a mesa e as conversas

meladas
como amoras
na boca.

(Zacca, maio 2017, p. 24, 25)

Tão distante da coloquialidade cotidiana quanto a escrita de Ana Carolina, esta experiência artística também se produz em certo clima solene e desconfortável. Desenha frases que se aproximam da textura incômoda dos corpos em busca do prazer eventualmente possível na prática da poesia. Embora sem polarizar os dois espaços – o que se poderia tomar como a significação sublime da arte, em oposição à designação dos corpos com suas vísceras profundas --, o poema se desloca entre um e outro, a partir da perspectiva do tempo. O emprego de uma forma verbal como título constitui procedimento incomume sugere uma leitura atenta ao que escapa às convenções. Sendo assim, a cronologia -- dependente das significações estabelecidas -- cede lugar à materialidade do vocábulo “tarda”, desencadeador de assonâncias: as vogais abertas (‘tarda’, ‘barca’, ‘leva’, ‘pedra’, ‘sol’, ‘engastadas’), que, ao longo do texto, retornam em alternância com vogais fechadas e nasais. Paralelamente, as aliterações (em dentais, bilabiais e sibilantes) compõem uma imagem sonora potente, superposta às imagens visuais propostas pela articulação – marcadamente surrealista – entre os significados do vocabulário empregado. Parece que a superposição das imagens sonoras -- reforçadas pela distribuição gráfica da página – às imagens plásticas opera o duplo movimento de descida das formas estéticas ideais e de subida dos sons e texturas pegajosas (oleosidade, ‘poeira’, consistência ‘melada’ que ‘lambuza’), instalando a escrita na superfície. Pode-se, então, perceber, na reiteração do signo “crianças” --com suas conotações de ‘jogo’ e ‘brincadeira’ -- um deslizamento, alegre e cruel, entre o gosto (amargo, gorduroso), que sobe das entranhas à boca, e as “lembranças”, “poemas” e “conversas”, lançados “sobre a mesa”. Seguindo a orientação deleuziana, para além dos efeitos trágicos ou irônicos, esse deslizamento na superfície produz o humor paradoxal. Se os efeitos desse jogo intrincado ‘tardam’, é porque se mostram extemporâneos.

Ainda no 1º volume dos Cadernos do CEP, Maria Isabel Iorio inclui uma releitura –  em homenagem? como paródia para descarte? num retorno desviante? – de um clássico drummondiano do humor modernista:

virilha

João era Teresa que era Raimundo
que era Maria que era Joaquim que era Lili
que não era ninguém.

João foi para os Estados Unidos, Teresa para as estatísticas,
Raimundo morreu de pancada, Maria ficou para a fila,
Joaquim suicidou-se e Lili ainda é chamada de
J. Pinto Fernandes como toda essa gente que não entra na
História.

(Iorio, maio, 2017, p. 19)

Apresentando-se como estratégia experimental distante de “Mariana” e “tarda” – escritas de um humor fantástico, que investe contra o real histórico por meio de um tenso contraste crítico --, “virilha” tende a aproximar-se de “em pedaços”, radicalizando o emprego do coloquial através da repetição em diferença de um texto antológico, que qualquer leitor é capaz de reconhecer. Se Drummond parodiava a lírica romântica, num gesto, que hoje nos soa como simples inversão, Maria Isabel Iorio é, possivelmente, mais séria e desabusada, pois homenageia o mestre subvertendo suas referências ético-sociais. Se, no contemporâneo, acirram-se as questões de gênero, etnia, identidade e pertencimento a uma nacionalidade, o novo poema afirma que não se trata mais de uma “quadrilha”, onde se troca de par, mas de uma virada mais complexa. O título “virilha” aponta para significados múltiplos: parte do corpo geralmente sexualizada, reversão sem objetivo definido, devir constante em lugar de metamorfose ou até mesmo (com grafia ligeiramente modificada) uma das combinações de sílabas que, a certa altura, nomearam a personagem de “Desenredo” de Guimarães Rosa, aquela que mudava de amores e se mostrava outra a cada parágrafo da estória. Enquanto as vanguardas exigiam liberdade de escolha e ampliação do conceito de arte, a violência do cotidiano atual, nos vários níveis de relações, exige que se flexibilizem os critérios de identificação e se reivindiquem serviços públicos e visibilidade para os habitantes das diferentes margens. Os traços irônicos, que eventualmente ainda restassem na “Quadrilha” moderna, foram ‘virados’ no humor cruel, onde as histórias (estórias) se confundem com a “História”.

Na Lógica do sentido, que me serviu de referência, buscam-se linhas de fuga à tradição do pensamento ocidental. Por isso mesmo, seu interesse se volta para o “humor”, distinto da “ironia”,trabalhada pela escrita dos filósofos canônicos. Em suas  três versões – socrática, clássica e romântica --, a “ironia” volta-se para as alturas transcendentes (em contraponto à profundidade dos corpos), apegada, em cada período, a uma das dimensões da proposição: significação, designação e manifestação. Escapa a esta linhagem o “sábio estóico”, que empreende a “dupla destituição da altura e da profundidade em proveito da superfície”. “[...] mais tarde e em outro contexto”, pode-se acompanhar a trajetória do Zen “—contra as profundidades bramânicas e as altitudes búdicas. Os célebres problemas-provas, as perguntas-respostas, os koan, demonstram o absurdo das significações, mostram o não-senso das designações” (Deleuze, 1974, p. 139). Companheiro do sábio estóico e do cultor do Zen, o poeta – especialmente desde Mallarmé – também empreende ascensões e descidas em direção à “superfície” da linguagem, onde acontece a “aventura do humor”.


Referências:

ASSIS, Ana Carolina de. “Mariana”. In: CHACAL, DIBLASI, I., KLIEN, J., LAMPREIA, S.  Cadernos do CEP, v. 2, Rio de Janeiro, junho de 2017.
DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. Trad. Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo: Perspectiva, 1974.
DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1967.
IORIO, Maria Isabel. “virilha”. In: CHACAL, DIBLASI, I., KLIEN, J., LAMPREIA, S. Cadernos do CEP, v. 1, Rio de Janeiro, maio de 2017.
MATOS, Lucas. ”em pedaços”. In: CHACAL, DIBLASI, I., KLIEN, J., LAMPREIA, S. Cadernos do CEP, v. 2. Rio de Janeiro, junho de 2017.
MENDES, Murilo. In: LIMA, Jorge de. A pintura em pânico; fotomontagens. Rio de Janeiro: Caixa Cultural, 2010.
ZACCA, Rafael. “tarda”. In: CHACAL, DIBLASI, I., KLIEN, J., LAMPREIA, S. cadernos do CEP, v. 1, Rio de Janeiro, maio de 2017.




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