sábado, 9 de abril de 2011

Dois de novembro

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Ele pintava pessoas mortas. Acordava todo dia às seis da manhã. Tomava um café, comia um pão com manteiga e abria o jornal. Dispensava as notícias sobre política, economia ou cultura. Buscava logo a página do obituário. Escolhia os retratados de acordo com a sua conveniência: o velório precisava ser em um horário adequado e em um cemitério próximo de sua casa. Quando havia mais de uma opção, decidia pelo nome. Gostava daqueles diferentes, próprios de tempos distantes. Onórios, Serafins, Godofredos, Dorotheias, Conceições.

Procurava não chegar muito cedo, mas também não muito tarde. O ideal era entrar quando houvesse muitas pessoas na sala. Tentava passar despercebido. Vestia sempre um terno preto e agia com discrição. Evitava olhar os familiares nos olhos. Temia ser abordado. Quando isso acontecia, costumava dizer que era um amigo distante. E se faziam mais perguntas ele se calava, baixava os olhos e simulava choro. Pedia licença para ir ao banheiro e não voltava.

Na maioria das vezes ninguém o incomodava. Tinha total liberdade para se aproximar do caixão e observar com cuidado o morto. Desenvolveu uma memória fotográfica incrivelmente eficiente. Bastavam-lhe trinta segundos para registrar todos os detalhes do modelo: os traços do rosto disfarçados com maquiagem, as narinas preenchidas com chumaços de algodão, o cabelo penteado para o lado, os olhos fechados, a boca semiaberta. A roupa fúnebre varia pouco. Os homens vestem terno. As mulheres vêm de vestido, às vezes de tailleur.

Nunca ficava para os enterros. Voltava à casa ansioso para pegar o material de pintura. Com carvão, desenhava em poucos minutos o retrato do defunto na tela em branco. Depois, espalhava as tintas na paleta e passava uma tarde inteira pintando. Os mortos são os melhores modelos. Nunca se mexem. Até mesmo as paisagens se movem. Mas os mortos, não. Nem sequer respiram. São perfeitos.

Pintou centenas de defuntos. Guardava as telas no porão. Não as mostrava a ninguém. Nem mesmo aos amigos mais próximos. Tinha receio de que não entendessem. De que o denunciassem. De que o internassem em uma clínica psiquiátrica. Mas um dia tomou coragem e convidou um renomado crítico de arte à sua casa. Mostrou-lhe a coleção completa. Explicou seu método de trabalho. Contou-lhe as razões mais íntimas que o haviam levado a se especializar em retratos de defuntos. O crítico amou. Viu na sua frente um gênio. E uma oportunidade de fazer muito dinheiro também.

Marcaram a vernissage para o dia de finados. Em vez de uma galeria, reservaram uma capela num cemitério próximo. Mandaram convites para as famílias de todos os falecidos retratados. No grande dia, o obituário do principal jornal da cidade trazia um aviso com o nome do pintor convidando para a exposição.

Havia muita gente na capela. Os jornais se interessaram pela pauta e mandaram seus melhores jornalistas dos suplementos culturais. Vários outros artistas também estavam presentes, interessados em conhecer aquele novo expoente da cena de arte contemporânea da cidade. Entre os familiares dos modelos havia aqueles que estavam indignados. Um deles arrancou o quadro de seu parente da parede e levou-o embora. Outro, em protesto, jogou tinta vermelha em três quadros. As famílias de outros cinco defuntos compareceram acompanhadas de advogados e avisaram que entrariam com um processo por danos morais contra o pintor e o curador. Havia também muitos curiosos, funcionários do cemitério, agentes funerários e simples amantes da arte.

O pintor chegou depois de todo mundo. Veio dentro de um caixão. Estava vestido como um defunto, de terno. Tinha os olhos fechados, maquiagem no rosto, a boca semiaberta e chumaços de algodão no nariz. Parecia um morto de verdade. E era.
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Fernando Paiva
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Fernando Paiva é guitarrista da banda Luisa mandou um beijo, publicou um livro de contos pela 7Letras e mantém um blog de parágrafos-poesia.
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