segunda-feira, 4 de abril de 2011

O Homem Periquito

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Ato 1

Ele me veio quando o livro sagrado foi aberto. Dentro das palavras uma dobradura em forma de pássaro, um periquito robusto e verde, com rabo de belas penas, saltou aos meus olhos, lânguido. No momento em que permiti a tal artimanha, o bípede encheu-se de vida diante das palavras de exortação do Rei Davi ao povo de Jerusalém no primeiro livro de Eclesiastes:

“Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu. Há tempo de nascer, e tempo de morrer; tempo de plantar, e tempo de arrancar o que se plantou; Tempo de matar, e tempo de curar; tempo de derrubar, e tempo de edificar; Tempo de chorar, e tempo de rir; tempo de prantear, e tempo de dançar; Tempo de espalhar pedras, e tempo de ajuntar pedras; tempo de abraçar, e tempo de afastar-se de abraçar; Tempo de buscar, e tempo de perder; tempo de guardar, e tempo de lançar fora; Tempo de rasgar, e tempo de coser; tempo de estar calado, e tempo de falar; Tempo de amar, e tempo de odiar; tempo de guerra, e tempo de paz”.

A criatura voou para fora da página, num ímpeto de liberdade, como se fosse tempo de vir à tona, respirar o ar, tornar-se abarrotado. Se fazendo vivo e pulsante a partir do meu sonho. Ao ouvir o canto tristonho do periquito que voava pelos quatro cantos da sala, atordoado pelas palavras e pela própria canção que trazia no bico, desejei nunca ter aberto o livro e desejei mais ainda nunca ter manifestado das palavras, aquele periquito verde água tão lírico, mas sabia que já era tarde.

Ato 2

O tempo foi passando como decretava as exortações do Rei, entretanto, nossa relação foi acutilada pela mutação dele, e sem que eu notasse, o periquito alcançara a imagem e semelhança de um homem, tão jovem quanto eu. Era curioso o sopro do periquito-homem, e agora que possuía miolo de humano e raciocínio de gente e não de bicho, cobiçava novos vôos em terra, cavando sua trajetória, cravando os pés no mundo. Não era mais pássaro, não tinha mais bico, nem cantava mais aflito, não comia mais sementes, nem tinha medo de gente, muito menos cairia em bestas arapucas pungentes.

Ato 3

Foram tempos de muita dor. Meu cerne se encheu de martírio ao entender que o periquito lânguido e verde havia se desvairado e adquirido senso crítico. E lacrimejei, pensando que não era mais o meu sonho, agora eram os sonhos do homem-periquito. Numa ocasião em que estávamos a sós, tentei num abraço maquiavélico, reduzi-lo ao ponto de partida, a dobradura origami dentro da bíblia. Mas o periquito-homem me olhou com desconfiança e pesar, indagando os motivos do aperto forte e desmedido. Abaixou os olhos e saiu com a roupa do corpo, humano e desapontado.

Ato 4

Dias depois, recebi um bilhete enfeitado de penas verdes água, a princípio, não pude entender em que tempo estavam os verbos, mas as palavras simples me indicaram o que havia de ser: “Pois, você me desprezou, senti que era tempo de odiar aquela que me deu o sopro da vida na ilusão, experimentei o estar vivo, lhe sou grato e lhe tenho amor de pássaro”.

Fim

O periquito-homem nunca mais voltou para casa, afastou-se de mim para sempre, não sei se por medo, tristeza, ódio, ou se talvez por amor, não sei se por saudades de céu, mato ou de mar. Foi difícil aceitar, mas, com o passar dos anos entendi que periquito-homem é de tempo longínquo, quiçá inalcançável, antes mesmo das denominações das coisas e das palavras, antes mesmo do tempo, do intento da poesia, antes da imaginação de um sonho.

Érica Magni
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Um comentário:

Anônimo disse...

Que homem sacana.